AS PORTAS

“Quando as portas da percepção forem purificadas os homens verão as coisas como elas realmente são: infinitas.”
Aldous Leonard Huxley (1894-1963)

Sinto saudades de São Martinho do Porto, vila piscatória, do Oeste português, onde passei desde que nasci, e até aos meus vinte anos, todas as Férias Grandes (era assim que se dizia!).
Por isso, hoje apetece-me “colocar” aqui um excerto do meu primeiro livro “As Portas ou a morte de um mito”, editado em 2003, pela Garrido Editores (actualmente Sete Caminhos), cuja acção se desenrola exactamente naquela vila.
Já prometi a mim mesmo, e ao meu actual editor, Victor Raquel, da Fronteira do Caos, e ao meu amigo José Eduardo Agualusa (que prefaciou o mais recente “Céu Negro”): daqui a uns anos volto a reescrever aquela ficção por mim tão mal tratada em primeira edição pela ânsia de publicar um primeiro livro.
Agrada-me contudo recordar que o livro foi apresentado em Junho de 2003, no Auditório da RDP, pelos meus companheiros e amigos Luís Filipe Barros e Armando Carvalheda.

A música seleccionada para hoje faz parte da “banda sonora” da “estória”.






Fiz o trajecto para o carro que se encontrava estacionado junto ao Jardim do Turismo, desta feita pela “rua dos cafés”, oficialmente Vasco da Gama, mas aquela era a denominação conhecida por toda a gente. Precisava de comprar cigarros e ali eu tinha a certeza que encontraria ainda uma tabacaria aberta ou até mesmo um quiosque que entre guloseimas e gelados também vendesse tabaco.
Fui andando e pensando enquanto me cruzava e esbarrava em certas alturas com grupos de jovens, pais e às vezes avós, à conversa, e com passos descompassados.
Esta é uma vila curiosa. Claramente dividida em duas partes. A parte de baixo, onde me encontrava, perto da praia, tem a badalação turística. Já a parte alta, tem o moradio dos locais, a Igreja, que em tempos visitei, e as casas dos veranistas mais antigos e tradicionais.
- Tem Português Suave sem filtro? – perguntei eu a uma menina que estava num quiosque encurralado entre duas esplanadas repletas de gente sentada e miúdos que corriam e gritavam e que atropelavam o mais distraído dos transeuntes.
A menina, novinha por sinal, não deveria ter ainda dezoito anos, acenou afirmativamente com a cabeça.
– Quero dois maços – tive que gritar ao mesmo tempo que três jagunços de palmo e meio quase me derrubam sem se aperceberem enquanto berram uns com os outros e discutem qual o tipo de gomas que devem comprar com o dinheiro que algum tio ou avô terá dado.
Entro no carro e dirijo-me tal como Daniel recomendou em direcção ao farol. Ligo o rádio e continuo a ouvir “Morrison Hotel” que ainda estava no leitor. Aumento o som.

Illegitimate son
Of a Rock n’Roll star.
Mom met dad in the back
Of a Rock n’Roll car.
Well, I’m an old blues man
And I think that you understand.
I’ve been singing the blues
Ever since the world began.


E fiz coro com Jim no verso final.

Maggie, Maggie, Maggie M’Gill.
Roll on, roll on.
Maggie M’Gill.


Fui avançando, delirante com a música, pela estrada do cais, em direcção à barra. Ali mesmo ao meu lado várias traineiras aportadas, quase todas da apanha submarina de algas. O farol da entrada da barra fica num monte que ladeia o cais. Pode-se passar a pé por baixo desse monte através do túnel de Santo António, e chega-se a uma pequena praia de pedras com uma das mais belas vistas de fora da baía. De noite, aquele túnel serve sobretudo para namoros e troca de carícias longe de olhares impróprios. De carro não se consegue lá chegar. Está fechado ao trânsito.
Viro à direita e subo em direcção ao farol através de uma estrada entre dois montes. É este intervalo entre os montes, chamado Vale de Guizos, que faz com que o vento norte, a terrível nortada, atravesse a baía em rajadas cruzadas, que são o terror dos exímios velejadores que abundam nesta terra.
Continuando a subir cheguei ao Cruzeiro de Santo António de onde se tem durante o dia uma das mais bonitas vistas conjuntas da baía e da vila. Irresistível mesmo de noite. Parei o carro por instantes para olhar lá para baixo. A cassete voltou ao princípio e “Roadhouse Blues” começou a soar de novo nas colunas quase em saturação do carro. Rodei um pouco o botão do volume para a esquerda e baixei um pouco o som. Meti a primeira e arranquei na esperança de encontrar rapidamente por ali perto o tal bar de que Daniel me tinha falado.
Estava no Facho. Já não era a primeira vez. É bom vir aqui durante o dia em jeito de passeio. Este que já foi o ponto mais alto da costa portuguesa, mas que tem vindo a perder altura devido à erosão, tem uma óptima vista da entrada da baía, e até, em dias claros, das Berlengas.
Não muito longe, talvez a trezentos metros, no meio de um pinhal em direcção à praia dos Salgados, uma luz, quase sumida, mais parecia uma estrela, mas ainda assim visível naquela imensa escuridão. Fui-me aproximando devagar. O conta-quilómetros não deveria marcar mais de trinta à hora. No meio de todo aquele mato uma casinha bastante pequena pintada em tons de um azul não muito feliz, só possível de ver em carros de emigrante português em França. A porta era mais escura e parecia estar fechada. Ou estaria apenas encostada. Ali mesmo ao lado só dois carros estacionados. O ambiente não era nada acolhedor. Porém, resolvi parar. Afinal de contas levava boas referências. O António, que eu ainda não conhecia, mas de quem o Daniel me tinha falado, havia de me servir qualquer coisa para beber e matar o tempo. Um dos carros ali estacionado seria o dele certamente. O outro talvez fosse das suecas, sabe-se lá. O Daniel podia estar certo do que dizia.
A porta estava mesmo fechada. Mas do lado de fora já dava para perceber que tinha lá gente. Pelo barulho que se ouvia da rua eu diria mesmo que aquilo estava apinhado.
Resolvi tocar à campainha. E esperar.
Não foi preciso muito tempo para ver a porta ser aberta por um tipo forte, de certeza muito acima dos cem quilos, quase dois metros de altura. Foda-se, que susto. O gajo quase de certeza que tinha dificuldades para entrar e sair todos os dias.
- É aqui o bar do António? – perguntei eu hesitante e ainda surpreendido por aquele gigante, ali especado à minha frente, que tinha à vontade o dobro do meu tamanho.
- Sou eu – respondeu com um vozeirão proporcional ao corpo.
- Foi o Daniel que me disse para vir aqui beber um copo...
- Força, pá. Entra. Eu só tenho a porta fechada porque isto aqui num sítio destes, um gajo nunca sabe, é preciso ter cuidado, é só malandragem por aí. E aqui só entra mesmo quem eu quero que entre.
Quase soltei uma gargalhada enquanto passei para a parte de dentro do bar. Como é que um tipo com aquele porte poderia ter medo de alguém?


(João Pedro Martins in “As Portas ou a morte de um mito”, 2003)