OS MATERIAIS DO AMOR

Hoje, publico aqui um excerto do meu último livro “Céu Negro”, apenas para realçar um poeta. O moçambicano Eduardo White, homem que fala e escreve sobre o amor como poucos. As suas palavras absorvem-me tanto que resolvi de forma nada inocente dar-lhe grande destaque no “Céu Negro”, colocando a personagem principal da trama a ler um dos seus livros, como neste post se verifica.
A música enquadra-se no cenário da leitura da mesma personagem. Uma peça deliciosa e ao mesmo tempo melancólica de David Sylvian. Muito curta. Por isso, sigam a minha sugestão, para ouvir a música vezes sem conta. E fiquem com a real demonstração de como as coisas mais simples são as mais belas.
Desfrutem.





Algures no espaço aéreo, entre a fronteira que divide os dois países da Península Ibérica e o aeroporto da Portela.
“(...)A velhice. Ai a velhice que é um contrato em letra morta com a vida, por não ter força de lei para passar por cima dela e porque a que tem é apenas uma prerrogativa para esperar com consciência que essa dávida se dissipe. E posto isto, sentado sobre esse mundo exterior que existe, está um homem na sua solidão. Não lhe perguntemos nada, nem causas, nem razão, vá lá sabermos porque vive assim alguém calado na dor interior que teceu. Talvez a resposta mais plausível que se encontrasse era a probabilidade de o sentirmos triste por ser a tristeza uma realidade nossa e não dele, de estarmos vendo o que não vemos por estarmos infalivelmente sendo. E tão naturalmente é possível essa verdade como possível é estar triste o homem ali sentado e com ele eu, que estou do mesmo modo e existo. Por isso não estou bem e as minhas mãos já não escrevem e os poemas ruminam-me a antiga memória de algum dia os ter escrito. Por isso simulo o mundo e simulo-me eu mesmo. Por isso penso que a poesia é falsa e inútil, quando o falso e o inútil são poesia também. Por isso é que deixei que os versos me desvanecessem a juventude até onde podiam. Por isso é que meu pai me dizia que a escrita não deixa um homem envelhecer como devia. Por isso é que não desconto para a reforma e não tenho cartão para a segurança social. Por isso é que não existo como um número e o Estado não me dá a importância devida. Por isso é que sou liberal só nas coisas em que tenho que ser liberal. Por isso é que a polícia me vigia. Por isso é que não há tranquilidade para quem se põe a escrever. E por isso também é que pergunto porque escrevo e que sentido é que terá a escrita dessa maneira que ninguém a lê. Por isso é que as respostas não existem e eu estou aqui a matar-me sem razão aparente para o fazer. Contudo, se isto continuar, vou agarrar na palavra revólver e espetar um tiro na cabeça da tristeza. E então voltarei a sorrir, a emprestar um brilho consequente aos meus dentes amarelecidos, a ter razões para estar onde nunca estive a sonhar com isso e a deitar-me fisicamente ao acaso na paisagem dos versos que pressinto.
Um tiro certeiro na cabeça da tristeza é tudo quanto basta para a emoção desse desafio devolver-me à realidade de saber-me homem, mesmissimamente igual a tantos outros: pequeno, humilde e sem glória.
Homem só. Mais nada.”

Fim. Jorge fechou o livro, depois de beber a última linha. Saboreou durante quarenta minutos aquele pequeno presente que lhe tinha oferecido uma jovem colega moçambicana que, como ele, estava em Lyon. Um livro de um poeta do seu país, chamado Eduardo White, intitulado “Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza”. Sorveu-o todinho, de um trago, e com muito prazer. Nem deu pelo final da viagem. O avião já estava completamente imobilizado na pista quando deu conta, e já saíam os primeiros passageiros quando tirou dos ouvidos os auscultadores do leitor pessoal de cd’s, que lhe permitiu ouvir de Lyon até Lisboa, pelo menos algumas cinco vezes, de uma ponta à outra, o disco “Secrets of the Beehive” de David Sylvian.