A BANDA SONORA DO "CÉU NEGRO"







“As Portas, ou a morte de um mito” (2003) revelou um ficcionista capaz de transformar uma boa ideia numa boa estória. É um livro que se vê enquanto se lê, exactamente como este “Céu Negro” – romances com vocação para cinema, e ambos musicais. A música, como seria inevitável tratando-se de um autor que vive emerso nela, joga um papel importante nos dois livros, sublinhando situações, ajudando a criar climas. Tal como no cinema(…)
Do Prefácio por José Eduardo Agualusa

Pode e deve fazer Play e Stop de acordo com a vontade de escutar a música em causa.




Alguns quilómetros e minutos depois estavam na fila extensa de carros do McDrive da Segunda Circular. A chuva caía agora com alguma abundância sobre o pára-brisas. Luís decidiu ligar o rádio que naquele momento estava a tocar o velhinho “Don’t Play That Song” de Adriano Celentano. Subiu o volume. Por breves instantes aquela música fê-lo recuar mais de vinte anos até aos bailes de domingo na Sociedade Euterpe. Os inesquecíveis apertos quando dançava tardes inteirinhas com Lurdes, mulher com quem casaria alguns anos depois, ainda antes de ter acabado o curso, mas de quem se estava agora prestes a separar. Do casamento havia uma filha, Cláudia, com treze anos, o único motivo pelo qual ainda não tinha saído definitivamente de casa.







Depois de receber das mãos de uma jovem funcionária do McDrive o pedido que tinha feito, Luís passou o saco com as coisas para as mãos de Dolores e arrancou suavemente com o seu acinzentado City Car da Mercedes. Um bonito carro. No auto-rádio, “It’s Raining Again” dos Supertramp fez com que sorrisse, porque naquele preciso instante a chuva deixou de cair e olhando o céu com mais cuidado até reparou que a maioria das nuvens que o encobriam havia sido varrida pelo vento destacando-se agora uma boa dúzia de estrelas naquela noite de Inverno. A lua, que há muito também andava desaparecida, estava cheia. Dolores foi repartindo o que estava no interior do saco. Lá de dentro tirou uma cola que passou a Luís e que este entalou entre as coxas e o banco do carro, um hambúrguer simples que desembrulhou e enfiou na boca do condutor e as batatas fritas que a própria foi segurando enquanto comia a sua parte daquele plastificado jantar.





Seguiram em direcção à costa. Isabel não ousou dizer rigorosamente nada. Limitou-se a ir, conduzida por aquele homem que mal conhecia, e que até há momentos atrás era apenas o seu médico, e nada mais. Alguém que lhe tinha proporcionado uma semana, melhor que o último ano da sua vida, infernal, cheio de crises, de stress e ansiedade desgastantes.
Naquele momento tudo lhe parecia simples. Sentia uma segurança interior como há muito não conseguia por mais que se tivesse esforçado por isso. Até a música que ouvia no interior daquele carro, tão bonito por dentro, como por fora, parecia a mais apropriada para a ajudar a sentir-se uma nova mulher.
Estavam já a percorrer a estrada junto ao mar quando Carlos resolveu quebrar o silêncio:
- Quer que mude o cd?
- Não, nada disso – respondeu Isabel. – Gosto disto.
- É o meu disco preferido – disse Carlos. – Se tiver que conduzir durante vinte e quatro horas sou capaz de o ouvir repetidamente até chegar ao fim da viagem.
- Eu tenho a sensação que conheço a música, mas não me lembro...
Carlos interrompeu-a de imediato:
- Mike Oldfield. “Tubular Bells”.
- Bem me parecia que conhecia. O Jorge tem o disco. Ele também gostava muito de o ouvir, mas agora até nem temos tempo para ouvir música.
Carlos não ouviu ou fez que não ouviu, e quando Isabel o olhou, este pareceu-lhe concentrado, na música e na condução.





Isabel ia observando todos os passos e todos os gestos que aquele homem, de ar maduro, sábio, bem parecido, de enorme charme e seguro de si mesmo ia levando a cabo subtilmente em cada coisa que fazia. Sentia-se bem, se calhar pelo cansaço, pela hora tardia, pelos medicamentos, pela paz sentida na última semana, mas ainda assim, reconhecia no seu corpo uma ligeira aflição. Um certo nervoso miudinho. Uma ânsia talvez motivada pelo facto de estar, pela primeira vez em muito tempo, a sentir-se tão bem. Como uma perturbação causada pela incerteza do que lhe reservaria o futuro próximo. Sentia-se como se de repente tivesse voltado a ser outra vez uma miúda de dezasseis anos, que raramente está sozinha com o namorado, longe dos olhares do resto do mundo.
Estava, momentaneamente, tão absorta, que só voltou a dar conta de onde estava quando Carlos lhe dirigiu uma das mãos na sua direcção.
- Espero que goste da música. Vamos dançar?
Apesar de o volume não estar muito alto, apercebeu-se de imediato da voz de Frank Sinatra a entoar “Night And Day”. Sorriu, olhando directamente nos olhos de Carlos, e levantou-se, deixando-se arrastar pela emoção daquele momento. Adorava Sinatra. E, sim, apetecia-lhe dançar.
Dançaram. Lenta e suavemente. Os pés mal se moviam. As respirações mais sonoras de cada um, sobretudo de Isabel, eram engolidas por aquela doce e triste melodia que preenchia a totalidade daqueles poucos metros quadrados de sala.
Com uma atitude mais segura e confiante como se fosse a coisa mais natural do mundo, Carlos segurava com firmeza o seu par. A mão esquerda na mão direita da parceira e a outra completamente aberta na zona inferior das costas de Isabel, que se sentia extasiada.
Como se de um sopro se tratasse, Carlos roçou ligeiramente os seus lábios com muita leveza no pescoço de Isabel. De imediato, sentiu estremecer todo o corpo da mulher que embora não tivesse tido vontade de demonstrar o calafrio sentido não conseguiu evitar uma inspiração mais prolongada.
- Está nervosa?
- Um pouco. – Deixou fugir sumidamente e entre dentes.
Carlos olhou-a bem de perto no fundo dos seus olhos e sorriu.
- Isso já lhe passa – disse-lhe.
E fez avançar os seus lábios na direcção da boca daquela mulher que nada fez para resistir, deixando-se envolver num longo e agradável beijo.
Quando ambas as línguas se encontraram, Isabel sentiu um misto de grande prazer e incómodo, ao perceber que tinha chegado ao orgasmo apenas com um beijo. Como mulher experiente e madura nada deu a entender, mas não conseguiu deixar de se desculpar, quase de forma natural, como que dando um aviso para o seu nervosismo e grau de excitação.
- Já não faço sexo há mais de um mês – disse.
Carlos, como bom cavalheiro, não respondeu. Fingiu até não ter percebido e continuou a agir de forma natural. Afastou-se por instantes de Isabel e de um pequeno armário tirou um cobertor que esticou no chão.
Aproximou-se de novo da mulher que estava imóvel junto a si e voltou a beijá-la, agora com mais loucura, excitação à mistura, um longo encontro de línguas, pequenas mordidelas de pescoço, lambidelas atrás da orelha, apertos de anca.
Isabel, rendida, não oferecia a mínima resistência. Aliás, não sentia praticamente força nenhuma nas pernas para poder sequer esboçar algum sinal de qualquer coisa. Deixou-se levar. Enquanto a beijava intensamente deixando-a cada vez mais louca de desejo, Carlos foi desapertando o vestido negro que Isabel trazia e que tão bem lhe ficava. Quando este caiu sobre o cobertor, Carlos apertou ainda mais Isabel contra si, fazendo-a sentir a excitação patente no seu pénis de encontro às suas cuecas. Excitadíssima também, Isabel desabotoou-lhe a camisa, fazendo escorregar as mangas pelos braços de Carlos. Atirou a camisa para o chão. Os seus dedos tocaram suavemente nos mamilos dele.
- Tem frio?
- Não – Carlos aproximou-se dela.
Isabel pôs gentilmente os seus braços para baixo.
- Ainda não.
A sua boca, língua e dentes lamberam, lavaram, sugaram e beliscaram o peito de Carlos, enquanto as suas mãos desapertavam o cinto e abriram o fecho. As calças caíram no chão à volta das suas pernas e as suas mãos agarraram-lhe os testículos. Isabel deslizou o rosto pela barriga de Carlos, procurando, com a boca, o seu membro. Ele sentiu os seus dentes a mordiscar com suavidade.
Passaram cerca de duas horas e meia em cima daquele cobertor ali esticado no chão, usando variadas posições, sem trocar palavra, apenas gozando a excitação daquele momento. Para além do barulho normal de uma situação daquele género, só o disco, de Frank Sinatra, em sistema repeat, se impunha. Mas, certamente, que ninguém lhe estava a dar atenção.





Largou dentro da banheira, já praticamente cheia, alguns sais de banho, e entrou, devagar, não fosse a água estar muito quente. Deixou que todo o corpo, à excepção da cabeça, ficasse submerso, e recostada, fechou os olhos, não querendo pensar em nada naquele instante.
Não terão passado mais de dois minutos quando levou a mão mesmo encharcada na direcção de um pequeno comando do sistema multi-room, para fazer arrancar o compact-disc que tinha no leitor. Os acordes do velhinho “Promise” de Sade Adu começaram então a ecoar por toda aquela casa e, mais uma vez, momentaneamente feliz, respirou fundo e fechou os olhos, enquanto reviu de memória os bons pedaços de sexo da noite anterior.
Enquanto recordava, deixou escorregar, despreocupadamente, a mão direita em direcção ao ventre e depois, mais abaixo, vagarosamente, começou a roçar, suavemente, dois dedos em redor da vagina. Inspirou profundamente, e levou a mão esquerda a tocar, primeiro num peito, depois no outro. Sentiu os mamilos endurecer. Na sua cabeça, as imagens da noite anterior. A excitação sentida ao lado de Carlos, e os orgasmos que teve, um por um, revivia-os agora, de uma outra forma, mas com uma tal intensidade que sentiu o sexo completamente molhado numa complexa mistura deliciosa de água e estimulação simultânea. Sentiu-se relaxada, como também há muito não conseguia.





"(...)Um tiro certeiro na cabeça da tristeza é tudo quanto basta para a emoção desse desafio devolver-me à realidade de saber-me homem, mesmissimamente igual a tantos outros: pequeno, humilde e sem glória.
Homem só. Mais nada.”

Fim. Jorge fechou o livro, depois de beber a última linha. Saboreou durante quarenta minutos aquele pequeno presente que lhe tinha oferecido uma jovem colega moçambicana que, como ele, estava em Lyon. Um livro de um poeta do seu país, chamado Eduardo White, intitulado “Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza”. Sorveu-o todinho, de um trago, e com muito prazer. Nem deu pelo final da viagem. O avião já estava completamente imobilizado na pista quando deu conta, e já saíam os primeiros passageiros quando tirou dos ouvidos os auscultadores do leitor pessoal de cd’s, que lhe permitiu ouvir de Lyon até Lisboa, pelo menos algumas cinco vezes, de uma ponta à outra, o disco “Secrets of the Beehive” de David Sylvian.





Naquele dia fazia vinte e dois anos. Era sábado. Levantou-se, como fazia quase sempre que não tinha aulas, quando já passava da uma da tarde. À noite, no Loucuras, esperava-o uma festa preparada por Maria Clara e alguns dos seus melhores amigos da faculdade. Nessa noite não ia trabalhar. Apenas curtir. Em vez de servir uns copos, iria bebê-los, até à última gota. A casa pagava. O patrão tinha-lhe prometido isso. Por todo o suor dado até àquela altura. Para ele e seus amigos, a noite era por conta.
Foi nessa festa que teve, pela primeira vez, a oportunidade de falar mais do que cinco minutos com Isabel, a irmã mais velha da namorada. Antes, só um ou outro “olá”, e “então tudo bem” muito rápidos. Sabia que a irmã de Maria Clara também estava na universidade. Aliás, frequentavam o mesmo curso, mas Isabel ia dois anos à frente, naquela altura, já a fazer o último ano.
Talvez devido aos copos que não paravam de chegar cheios à mesa, a verdade é que a partir de certa altura Jorge começou a expandir todo o seu charme para cima da irmã da namorada. Como estavam já todos muitos bem bebidos a meio da noite, nem Maria Clara deu conta de nada.
A distracção era tanta, que ninguém reparou que Jorge se levantou a meio dos slows, e dirigiu-se ao seu amigo disc-jokey pedindo-lhe para tocar um tema que estava na berra e que gostava imenso de ouvir, de Sérgio Mendes, chamado “Never Gonna Let You Go”. Quando no meio de toda aquela escuridão e fumo os primeiros acordes se fizeram ouvir, conseguiu captar o olhar de Isabel e fez-lhe um sinal na direcção da pista de dança. Ela levantou-se, e ninguém deve ter reparado. Nem a irmã.
Encontraram-se, bem no meio da pista, rodeados de dezenas de casais, longe dos olhares dos amigos que estavam, na sua maioria, sentados na mesa a deliciarem-se com o champanhe e as fatias do bolo de anos que o patrão fez questão de oferecer.
Bem bebido como estava, Jorge agarrou em Isabel apertando-a contra si. Encostou a sua à cara dela, e não procurou esconder o grau de excitação em que se encontrava, quando a sua cintura roçou e vincou a daquela loura e excitante mulher, ainda que ela fosse a irmã da sua namorada.
- O que estás a fazer?
- Não digas nada – respondeu Jorge. - Deixa-te ir. Estou a adorar este momento. Não o estragues.
- Mas eu não me sinto bem assim. Está ali a minha irmã.
- Sabes qual é o meu lema? – Perguntou Jorge.
Isabel não respondeu. Ficou à espera da resposta. Ele continuou:
- Ninguém é de ninguém. E quero que saibas uma coisa… – disse-lhe ao ouvido. – Talvez não acredites, mas há muito que te desejo.
- Mas, e a minha irmã?
- Não fales nela agora. Dança! Queres parar?
- Não – respondeu Isabel. – Sinto-me bem. Mais do que gostaria.
Jorge descolou as faces, e beijou-a apanhando-a desprevenida. Um beijo longo. Apaixonado. Ela correspondeu. Ele percebeu a excitação que Isabel sentia naquele momento. Os olhos semicerrados dela diziam tudo. Não eram necessárias palavras.
- Sabes onde moro, não sabes? – Perguntou, de seguida.
Isabel acenou afirmativamente com a cabeça.
- Vai ter comigo amanhã. A sério, desejo-te tanto. Vai ter comigo. Havemos de resolver tudo depois, mas vai ter comigo.
Isabel ficou a olhar Jorge nos olhos. Talvez embalada pela música agradável, pela excitação e, muito provavelmente, pelos copos que já tinha bebido, acabou por concordar:
- Está bem, mas só depois do almoço. Ao domingo temos de almoçar com os nossos pais.
- Eu sei disso – referiu Jorge.
- E a minha irmã? – Perguntou Isabel.
- Não te preocupes, eu invento qualquer coisa. Digo-lhe que estou ocupado, que vou sair com uns amigos, qualquer coisa. Não te preocupes, está bem?
Isabel não disse mais nada. Jorge procurou de novo os seus lábios, e beijou-a. Ali, no meio da pista de dança ao som de Sérgio Mendes. No meio de tanta gente, e longe de todos os olhares.

“I Never Gonna Let You Go/
I’m Gonna Hold You In My Arms Forever(...)”






Naquela noite, um dos bares mais agitados de Maputo estava particularmente animado pela presença da comitiva do Norte Futebol Clube que estava a despedir-se por ali daquela curta digressão de pré-temporada.
Era quarta-feira, noite de karaoke, e aquele local registava uma enchente notável. Muita cerveja Laurentina e muitas garrafas de uísque de várias marcas a sair e a encher o espaço existente no cimo das mesas de toda aquela gente.
Os presentes deliravam a cada música que era interpretada, sobretudo se o artista espontâneo se tratava de um jogador conhecido de todos os que ali se encontravam. Ninguém se preocupava com as desafinações. Os aplausos chegavam até a ser maiores nesses momentos.
No meio de toda aquela confusão havia mesmo quem aproveitasse para pedir inúmeros autógrafos aos ídolos, ali bem à mão de semear. Eles não se faziam rogados. Com as moçambicanas mais atrevidas chegavam mesmo a trocar beijos na boca, a pedido das próprias.
E é no meio de todo aquele barulho que mais uma vez o mestre-de-cerimónias do local, um brasileiro por ali radicado há algum tempo, pede às pessoas um pouco de silêncio para se escutar os próximos inscritos.
- Minha gente, um pouquinho de silêncio, por favor. Vamos lá galera, chamo agora ao palco uma dupla de amigos meus, que apesar de serem daqui de Maputo, estão agora por cá apenas de férias. Toda a gente aqui os conhece, eles são jornalistas na Europa. O Matola e a Solange. Palmas para eles, gente. Vão cantar um tema difícil de Baden Powel e Vinicius de Moraes, "Samba em Prelúdio”. Vamos lá, Matola e Solange. Querida, sobe aí…









Dedicatória do Livro "Céu Negro":
Para o Nuno Carvalho ler onde quer que esteja