"NO AR - LIVE ON PAPER”

“E você…ainda está aí?...”
Não posso deixar passar esta data sem homenagear uma das mais belas vozes de sempre da rádio em Portugal: José Ramos.
Com ele, ainda eu era muito novo, partilhei os mesmos corredores, os mesmos estúdios da Rádio Comercial. Já lá vão quase vinte anos. Ah! O orgulho que eu sentia por poder utilizar o mesmo microfone de um dos meus ídolos da adolescência.
Quis o destino, vá lá saber-se porquê, que eu tenha sido uma das últimas pessoas a enviar um email ao José Ramos. Uma mensagem verdadeiramente perdida no tempo e que por isso nunca teve resposta, e onde dava conta de tudo o que com ele aprendi, até o gosto de fazer rádio...Estou em crer que não terá tido tempo para a ler. No momento em que a escrevi, menos de vinte e quatro horas antes do seu último fôlego, eu ainda acreditava que mais uma vez ele voltaria a ganhar a batalha ao “monstro”. Enganei-me. Daquela vez, o “monstro” foi mais forte.
Por isso, transcrevo hoje neste post linhas do livro de José Ramos, “No Ar - Live on Paper”.
E uma das suas músicas preferidas.




Esta não é uma escrita de lamentos ou frustrações.
Antes pelo contrário.
Às vezes (na maioria delas), fui acusado de ser pessimista e derrotista. Noutras de ser apressado e de me desgastar por coisas sem importância. Pois é, falar é fácil, mas até hoje, em todas as apostas em que era imperioso vencer, venci, contra tudo e contra todos, com convicções férreas e inamovíveis, o que pode dizer que sei muito bem quem sou, de onde venho e sobretudo para onde vou.
Não. Não vou por aí…diria outro José.
Não. Não estou louco.
A insanidade jamais será loucura. Só para os ignorantes e mesmo assim por falta de argumentação.
A consciência plena não é loucura, só não a reconhecem os descrentes, aqueles que não têm fé, nem sabem o que aqui andam a fazer.
Mais…Nunca estive tão consciente da realidade efémera que somos, quando descubro e percebo que afinal tudo é «finito».
Quando de repente, ao virar da esquina, ao acender de mais um cigarro, se perde o vigor da juventude e nos apercebemos que, afinal, pouco ou nada valemos.

É nessa altura que se pergunta…Onde estão os amigos?
Desapareceram.
Fugiram.
Esqueceram-se…Estão muito ocupados…
A Ironia está aqui…«Mais tarde ou mais cedo…chega p’ra todos.» Chega a todos.

O peito aperta…Dói.
Sufoco.
O chão escorrega.
Estou cansado…muito cansado.
Na cama do lado, ouve-se um «velho» a respirar pelo ventilador enquanto se espera que asfixie no próprio vómito. Precisam da cama.
A alternância do «politicamente correcto» ou de entre a decência do «parece bem/parece mal» e a convicção de que não iremos nunca a lado algum, ali, naquele lugar, não existe.
Não tem razão de ser. Perde-se a razão…perde-se o sentido.
Não faz sentido.
É ali que aprendemos que nunca se deve prometer a uma criança (por efémera que seja a promessa, só para a sossegar) uma «coisa» quando não se faz tenções de mais tarde lembrar…quanto mais cumprir.
Aqui, na cama destes Cuidados Intensivos, as pequenas «coisas» fazem o maior dos sentidos.
Fazem O SENTIDO.
E nós sentimo-lo…na pele…na carne…nas entranhas…
Primeiro…vem o receio,
o espanto, a admiração, a incredibilidade, a novidade
a desilusão, o desencanto, o desgosto.

Depois…a calma, a serenidade,
as certezas,
a solidão,
o desespero da espera, a agonia,
A verdade.

O peito aperta de novo…Dói intensamente sem cessar.

Os alarmes não soam. Estará tudo calmo?
Ao fundo, nos intervalos da agonia do vizinho do lado, ouve-se o ruído do futebol.

Aleluia!!!!!

Há vida neste hospital.
Mas onde estão
os resultados das enzimas,
o médico, a medicação,
a ordem? O urinol?
Porra.

Estou tão na merda. Tão na merda que até o relógio, o meu inseparável Rolex, parou.
Terá desistido? Também tu, ó máquina do tempo? Não é suposto teres alma…

Estou cansado…muito cansado.
Mijado e farto,
Sobretudo farto…
Quero ir-me embora.
Quero um banho.
Quero uma bica e um cigarro.
E tenho medo…muito medo.

Quero viver?
Quero morrer.

(José Ramos,
Em recuperação de um enfarte do miocárdio,
4:19, de 20 de Junho de 2004)

O SENHOR José Ramos viria a falecer no dia 20 de Março de 2006, vítima de cancro. Tinha 51 anos. E ainda tanto para dar.