IMIGRANTE DE TERCEIRA GERAÇÃO

O Libânio é guineense. E na Guiné Bissau, durante os melhores anos da sua juventude, combateu ao lado das tropas portuguesas, contra os seus próprios “irmãos de sangue”. Após a retirada do colonizador, e com o natural receio de retaliações, o Libânio achou por bem, e acima de tudo pelo amor à própria vida, entrar num avião e voar para Portugal, que se prontificou de imediato a acolhê-lo.
Durante o tempo que serviu Portugal, na guerra que decorreu no seu próprio país, o Libânio era enfermeiro-especialista, uma formação adquirida pelo empenhamento do próprio e o investimento do colono que vislumbrou nele enorme potencial para a função.
Com apenas 25 anos, Libânio, depois de aterrar em Figo Maduro, e largar a farda militar, apesar de todos os sonhos que transportava com ele, só conseguiu sobreviver construindo a sua própria barraca no Prior Velho, e, arranjando, aqui e ali, uns biscates nas obras, porque os brancos que estavam a chegar em grandes quantidades, vindos das antigas colónias, e alguns do seu próprio país, tinham todo o direito de ser instalados numa “casa a preceito”. Nunca numa barraca como a dele.
A história da vida do Libânio em Portugal podia durar, pelo menos, mais três ou quatro páginas, mas temo que isso só deixasse orgulhosos os idiotas que se dizem nacionalistas e renovadores, ao mesmo tempo que esquecem que os portugueses passaram os últimos 500 anos a partir para outras terras à procura de melhor condição e riqueza. Por isso, opto por um salto no tempo, como se de uma novela este escrito se tratasse. Receio ainda, contudo, que o fim deste, não nos traga lágrimas de alegria contida ao longo de tantos capítulos em que nos retraímos pelas contrariedades da própria trama. Antes pelo contrário. Esta, provavelmente, reserva-nos uma dor de estômago angustiante e um amargo de boca quase insuportável pelo facto de nos fazer sentir culpados do desenlace.
Cerca de 10 anos depois de se instalar em Portugal, o Libânio gerou um filho. Este, por sua vez, com pouco mais de 20 anos, deu-lhe um neto. Quer filho, quer neto de Libânio nasceram, ambos, em Lisboa. O primeiro ainda na “casa” do pai no Prior Velho, mas o outro, mais novo membro da família, já nasceu numa zona residencial mais “finória” – Chelas.
Ao neto do Libânio, a quem foi atribuído o mesmo nome do avô, é comum chamarem: “imigrante de terceira geração”. E é isto que causa azia, mas só a tipos ignorantes, como eu, claro. O “puto” Libânio tem apenas cinco anos, nasceu em Lisboa, aliás, onde já o pai tinha nascido, e a ele é atribuído, pelas autoridades portuguesas, o título pomposo: “Imigrante de Terceira Geração”. Mas como? Não entendo”! De certeza que isto se refere ao pequeno Libânio de apenas cinco anos, nascido, e nunca saído, de Lisboa, nem para ir à praia da Cruz Quebrada, que a vida não está para isso, filho de um homem que nasceu no Prior Velho e conhece todos os tipos de aviões só pelo barulho deles ao levantar voo, cujo único sítio mais longe que já foi, remonta há uns anos atrás quando teve que carregar às costas com quilos e quilos de sacas de cimento durante a construção da Barragem do Alqueva? Será que estamos a falar exactamente daquele “puto”? Mas, “Imigrante de Terceira Geração”, porque?...Ele foi de onde para onde, afinal de contas?
O “puto” Libânio ainda nem sequer sabe ler, nem escrever, mas já lhe foi atribuído um rótulo. Se não fosse tão triste o seu futuro, quase poderíamos achar tratar-se de um privilegiado. Nunca foi à Guiné Bissau, nem sequer sabe onde fica o país do avô olhando o globo que o pai a muito custo lhe ofereceu no Natal, e que serve ao mesmo tempo de candeeiro do pequeno quarto do T1 que habita em Chelas. Fala naturalmente português, como um guineense mesmo doutorado nunca conseguirá falar, mas ainda assim dizem que é um “sacana” de um “imigrante de terceira geração” que está em Portugal só para sacar o dinheiro e o trabalho do português, que, por seu turno, nunca na vida sonhou sequer em juntar água, cimento e terra com uma pá e construir um obelisco que fosse, à chapa do sol escaldante de Agosto ou debaixo das intempéries de Abril. O “puto” Libânio é tramado. E, resta acrescentar que, só entra na escola no ano que vem se, entretanto, o pai não perder a serventia já prometida na construção do novo aeroporto de Lisboa, que não é em Lisboa, mas para as bandas de Alcochete. Porque, caso contrário, lá se vai a renovação da autorização de residência e de permanência de quem nunca conheceu outra terra que não esta, e é recambiado para uma outra onde só são vivos os “putos” da idade dele, netos daqueles que o avô andou a combater de G3 empunhada na mão.
Existe, portanto, um bom futuro em perspectiva, à espera do “puto” desta “estória” Mas, isso a nós passa-nos ao lado. Porque, afinal, ele nem deveria ter vindo para uma terra que não é a dele.
Resta-me uma pergunta que não resisto a fazer: o que é que está errado nesta “estória”?