CARTA AO MEU FILHO QUE ESTÁ LONGE

Hoje, tal como faço diariamente, abri um livro. Não sei exactamente porque, mas entre tantos da minha biblioteca, escolhi aquele. Quando o abri, na primeira página, havia um desenho e o teu nome. Recordei-me, de imediato, do dia em que comprei aquela preciosa obra. Tinha sido durante um lançamento. E, também, me lembro bem, o caro que me custou. A capa dura, as folhas grossas de papel de primeira, o autor, um homem famoso. O tempo que estive na fila à espera de um autógrafo. Enfim…
Naquele dia, mal cheguei a casa, coloquei-o em cima da minha mesa-de-cabeceira para começar a lê-lo nessa mesma noite. Lembro-me que, quando descobri, poucas horas depois, que tu escreveste, ali, logo na primeira página, o teu nome, te chamei. Eu estava, naquele momento, de facto, muito zangado. O livro era meu, tinha sido acabado de comprar, e tu tinhas tido a ousadia e o atrevimento de escrever o teu nome nele e, ainda por cima, acrescentando-lhe um desenho sem jeito nenhum. Chamei-te para te dar uma grande bronca. E tu vieste até perto de mim, e como que adivinhando a minha ira, chegaste de sorriso nos lábios, meio envergonhado, ou direi mesmo, sem vergonha nenhuma, e, antes que eu dissesse o que quer que fosse, quando viste que eu segurava o livro nas minhas mãos, e estava irritado, resolveste antecipar-te: “pai, gostaste do coração que eu desenhei no teu livro? É o meu coração, pai...Para ti. E também escrevi o meu autógrafo. Como os escritores fazem. Gostaste, pai?” E a seguir saltaste para o meu pescoço, e beijaste-me nos lábios como fazíamos desde que nasceste.
Pois é, naquele dia não houve bronca. Como poderia? Eu estava preocupado com um livro precioso que acabara de comprar. Mas o meu bem mais precioso, tu, tinhas colocado nele a tua marca. Não por maldade, ou por desejar estragá-lo, mas para me fazeres uma surpresa.
Hoje, tantos anos passados, e numa altura em que já constituíste família e estás distante, ao abrir o livro, tudo aquilo saltou para fora dos meus arquivos da memória. Passei os dedos sobre aqueles gatafunhos que pretendiam ser um desenho do teu coração e o teu nome. Naquela altura ainda mal tinhas aprendido a escrever o teu nome.
Agora, estás longe. Já lá vai tanto tempo que não nos falamos. A vida é tão estranha.
Quantas vezes te disse para estares quieto porque eu desejava ter um pouco de silêncio? Sabes, meu filho, hoje daria tudo o que tenho para ouvir a tua voz. Ter o teu abraço, outra vez. Não sei quando nos tornaremos a ver. O teu trabalho mantém-te muito distante de mim. Mas, fica definitivamente a saber de uma coisa, foi muito bom encontrar o teu nome e o teu coração desenhados no meu livro. Fez-me muito bem à alma relembrar tudo isto. E fico feliz por não te ter dado a bronca, naquele dia. Afinal de contas, tu deste-me um grande presente. Deste o que tinhas de melhor: o teu afecto em forma de rabiscos. Sinceramente, desejo que os teus filhos façam o mesmo contigo. Porque chegará o dia em que, distantes, tu ansiarás por vê-los, por tê-los a teu lado. Sinceramente, espero que encontres recados, bilhetes, desenhos em cada folha dos teus livros, ou por exemplo, na capa de um CD.
Obrigado, meu filho!

A disciplina e a ordem, o respeito pelos bens alheios, são valores que os pais devem obviamente passar aos seus filhos. Que ninguém pense que se deve deixar os filhos fazerem o que querem, com os seus e com os pertences dos outros. No entanto, há que ter sensibilidade para perceber a diferença entre a má educação e um puro acto de amor. Neste caso, entre maldade e a expressão do mais puro afecto de um filho pelo seu pai. Por isso, aprenda a valorizar as pequenas grandes coisas que se expressam com um simples gesto espontâneo, como um abraço inesperado, ou um beijo que parece fora do contexto. Nunca rejeite tais manifestações. Pelo contrário, retribua, enquanto pode, enquanto os seus filhos estão à sua guarda, enquanto estão sob o seu tecto. Mais depressa do que imaginamos, e queremos, chegará o dia em que a vida os levará para longe, como flechas disparadas por um hábil arqueiro, para as conquistas que lhes cabem. E, então, nessas alturas, você terá todas essas boas lembranças para alimentar os dias da sua saudade.