Nunca até então nos meus curtos oito anos de vida uma segunda-feira me tinha parecido tão bonita. O sol ainda mal espreitava e já eu me espreguiçava de frente para a janela do quarto da casa de minha avó que foi a minha morada até aos doze anos. Vivíamos mesmo ao lado da escola primária (a casa da minha avó era o 87 e a escola o 89 ou o 85, nem lembro bem), mas isso não impedia que eu fosse habitualmente o último a entrar pela sala de aula adentro, o que deixava enfurecida a minha professora que tinha que fazer cerca de trinta quilómetros para ali estar. E ela chegava sempre a horas. Já eu…
Mas naquela manhã, naquela segunda-feira, naquele dia, não senhora. Eu ia ser o primeiro a chegar. E fui. E por causa disso deixei em sobressalto a professora que ao ver-me sozinho e tão antes da hora sentado nos degraus da escada que dão acesso à escola tratou logo de pensar que teria acontecido algo de errado. Mas não. Faltava ainda um quarto de hora para o início das aulas e eu sorria, mais e mais à medida que a professora caminhava aproximando-se de mim. Mas não era por ela que eu estava assim, feliz, ansioso, como se aquele fosse o melhor dos dias já vividos, como se mais nenhum igual fosse ter. A única alegria sentida ao ver a professora aproximar-se só tinha mesmo a ver com o facto disso representar que estava quase na hora de a encontrar. A ela, a minha amada, o meu primeiro amor, que naquele tempo eu ainda não sabia o que isso era, mas era qualquer coisa.
A Eva.
A Eva tinha exactamente a minha idade, oito anos. Alentejana, mas do Alto Alentejo, de Évora, como fazia questão de dizer em alto e bom som a mãe, porque não fosse cá por coisas, o Alentejo é muito grande, e o Baixo é o Baixo. O Alto é que é bom.
Aquele seria o meu primeiro dia de namoro oficializado depois de na tarde de domingo ter tido a enorme coragem de me deslocar a casa da mãe da Eva para lhe pedir o consentimento de namorar com a filha. Claro que antes tudo foi conversado, concertado e alinhavado com a própria, não fosse cá o rapaz ter o trabalho de tamanho atrevimento e depois a própria não querer saber de nada. O momento escolhido havia sido o mais indicado. Pouco depois das seis da tarde, ainda muito antes de qualquer coisa que pudesse interessar na televisão, o que convenhamos naquele ano de setenta e quatro também não era nada do outro mundo, mas o mais importante era realmente o facto do irmão da Eva, mais velho claro, e assustador, lembro-me bem, estar ausente naquele momento. Por isso, tal como combinámos, ela ia para casa à frente, e passados alguns minutos eu tocaria à campaínha, subiria, e ela avisaria a mãe que eu tinha algo para dizer. E assim foi. E eu disse. Disse e nem sequer ouvi resposta. A mulher depois de uma tremenda coragem que tive que ganhar e que me consumiu praticamente até ao pouco que de mim era gente saiu a rir em passo acelerado porta fora e não a voltámos a ver. Pensei que estava o baile armado: ai que ela foi chamar o filho! Mas ainda bem que não foi isso. A Eva altiva nos seus oito anos, rapariga madura, lá me foi acalmando dizendo que a mãe saiu contente, tão contente que foi apenas a correr para contar à minha avó que o neto dela ia casar com a sua querida filha. Sim, porque aquele pedido tinha sido feito com a devida seriedade, tal como mandavam as regras de então. Fiquei mais aliviado após a observação da Eva e de tão feliz que estava, e apanhando-me ali sozinho apenas com ela dentro de casa, beijámo-nos como já uma vez tínhamos feito bem escondidos atrás do portão da escola e exactamente como faziam os actores da telenovela. Bendito dr.Mundinho e Geruza da novela Gabriela que para a falta de enciclopédia sobre o assunto nos ensinaram aquilo que podíamos fazer. E era bom. Não era molhado, isso vem mais tarde, mas era bom, era algo de diferente, e importante. Aqueles beijos iam selar com certeza a nossa união para o resto das nossas vidas. Ninguém nos poderia afastar. A coisa era séria.
Por isso aquela manhã de segunda-feira não estava a ser uma manhã qualquer, nem sequer parecida com outra qualquer segunda-feira, que era sempre o dia mais complicado para levantar da cama. Aquela manhã era a minha primeira manhã de namoro a sério com a Eva, a minha vizinha da frente, e praticamente única rapariga que eu conhecia e brincava comigo desde que eu tinha nascido.
O sol já se preparava para o descanso e da Eva naquele dia nem sinal. A professora perguntou, e ninguém soube responder. À hora de almoço ainda fui a pedido dela tocar à campaínha da Eva mas ninguém respondeu, e nem mesmo a minha avó sabia de nada. Estranhei, assustei-me, senti o meu pequeno coração a querer saltar para fora da camisola branca de gola alta que usava naquela manhã e que habitualmente só vestia aos domingos depois do banho do dia anterior tomado na selha que transportávamos semanalmente para o interior da cozinha. Não era lá muito normal a minha avó não saber de nada. A mãe da Eva não dava um passo sem lhe contar primeiro onde ia meter o pé. Voltei à escola e passei, assim, o resto da tarde, entristecido pela ausência do meu amor, da minha Eva por quem mal tinha conseguido ter uma noite dormida com tranquilidade. Só ao fim da tarde recebi a notícia: o irmão da Eva tinha morrido num acidente de mota naquela manhã e elas tinham partido para Évora onde iria ser velado o corpo.
E o meu coração ainda ficou mais pequeno quando uns dias depois recebo a notícia que a Eva não iria mais voltar e que ficaria a viver no Alto Alentejo com a mãe na casa de uns compadres. O irmão era o principal sustento das duas e sem ele elas não poderiam mais ficar ali. Foi um rude golpe para quem com oito anos tinha tido dias antes a sua primeira atitude como se fosse um homem grande. Mas haveria de sobreviver.
(Excerto do livro SEGREDOS, publicado pela Fronteira do Caos Editores, em 2009)
(Excerto do livro SEGREDOS, publicado pela Fronteira do Caos Editores, em 2009)