HELENA

Aquele Setembro ainda não tinha chegado ao fim. As férias escolares de Verão eram então longas naquele tempo, e naquela altura as saudades dos amigos já começavam a doer. Dias antes da chegada do meu aniversário, os dezoito anos que há tanto ansiava, combinámos um encontro para rumar à escola verificar os horários do ano lectivo que se aproximava. Éramos muito chegados e tínhamos a certeza que pelo menos devíamos continuar juntos na mesma turma. Foi o que aconteceu felizmente. Já nos preparávamos para abandonar o local e seguirmos em direcção a um pequeno café onde habitualmente costumávamos ir desde o nono ano quando ao longe surge agitada como sempre a Helena acelerada como era seu apanágio, faladora pelos cotovelos, já estávamos habituados. Nada de novo portanto.
Mentira.
Naquele dia ela trazia um brilho especial. Qualquer coisa de deslumbrante que mexeu comigo quando a olhei e cumprimentei. Eu dei por isso. Dei mesmo. O bronzeado talvez, a roupa branca que vestia e que realçava aquele explendido tom de pele adquirido nas praias da costa alentejana. Era qualquer coisa…de bom.
Antes dessa tarde a nossa relação era curiosa. Discutíamos política como gente grande, cada um a puxar para o seu lado, claro, e a escola toda a ver e a ouvir. Nós nem dávamos conta. O que interessava era vincar os pontos de vista de cada um. O importante era demonstrar quem é que tinha a melhor filosofia. Uma tontice, pensariam os outros que nos ouviam, mas como entre nós a discussão pautava-se pela cordialidade e respeito pelas ideias um do outro aquilo até dava um certo gozo. Depois daquela tarde, as coisas…não mudaram muito. A diferença é que a partir de certa altura parávamos um pouco de discutir para fazermos outras coisas que soavam melhor se sussurradas.
Aquele foi um tempo estranho, ora tanto nos amávamos como nos agredíamos, tantos eram os gritos, como segundos depois voltávamos às juras de amor para o resto dos nossos dias. Assim foi a relação de dois anos que mantive com a Helena entre o fim do secundário e a chamada para cumprir o serviço militar obrigatório depois de ter perdido o direito ao adiamento por culpa do “numerus clausus” que me impediram de entrar na faculdade de direito. Paciência. A tropa, na altura ainda não sabia, só me fez bem para abrir os olhos.
A Helena também não fez por menos. Enquanto eu fui brincar às guerras para a Serra da Carregueira, ela foi prosseguir os estudos para um sítio mais pacífico como a União Soviética que por acaso naquela altura se estava a desmantelar. Claro que aquela relação não poderia ter mais futuro. Seis anos de ausência dela para quem a partir dali só convivia com homens durante cinco dias por semana e por um prazo de quase dois anos. Estava-se mesmo a ver.
Ainda assim foi com muita pena minha que aquela relação apesar de bastante conturbada chegou ao fim. As desavenças tidas em apenas dois anos eram equivalentes a uma relação de qualquer casal normal que convive até às bodas de prata, mas as poucas coisas boas vividas coravam de inveja os personagens mais famosos de Shakespeare.
Dessa relação com a Helena resulta o meu maior acto de cobardia. Uma idiotice como muitas outras que eu tinha, mas para pior. Numa tarde como tantas outras em que achei estar a controlar a hora da chegada de minha mãe a casa, eu e a Helena estávamos a trocar uns mimos sentados no sofá, eu com um traje diminuto e ela, para não parecer mal, com o roupão de noite da minha mãe, azul berrante e cheio de pelo. Ainda a missa ia no adro e congelámos instantaneamente quando de repente ouvimos uma chave a ser metida na porta. Quase simultaneamente dou um salto que naquele tempo talvez tivesse batido algum recorde do Guiness e corro a enfiar-me na casa de banho, deixando a pobre da Helena estarrecida e enfiada no roupão azul berrante e cheio de pelo da minha mãe. Permaneço imóvel no escuro da casa de banho à espera de “ver” o que aquilo do outro lado da porta ia dar. Ouço palavras cruzadas que não entendo, mas que me pareciam educadas. Já não era mau. Pressinto então o afastamento da minha mãe e volto à sala onde já vejo a Helena sem o roupão azul berrante e cheio de pelo a vestir a sua própria roupa que estava aqui e ali espalhada pelo chão de toda a sala. Resolvo partir à descoberta das minhas coisas também e quanto calçava uma das meias brancas que usava na altura ouço a minha mãe lá da cozinha: “querem que vos arranje alguma coisa para comer? Devem estar com fome…”. «Chiça», pensei eu, mas não disse. Fiquei-me por um sumido “não” que custou a sair tal era a falta de forças que sentia naquele momento. A Helena estava mais vermelha que um pimentão e enquanto se vestia não fazia sequer um esforço para levantar os olhos do chão e olhar-me. Também, o que é que eu podia esperar?
Saímos dali para fora mal pudemos e mal vestidos ainda. Claro que no caminho para sua casa a Helena fez várias tentativas para cometer um homicídio, mas como lhe pedi duas mil e quinhentas vezes desculpa, lá trocou a vontade de me matar pela vergonha que iria sentir no futuro sempre que voltasse a encontrar a minha mãe. Disse-lhe que não se preocupasse, não sabendo eu ao certo o que é que me esperava quando regressasse a casa. Larguei a Helena à porta da casa dela e virei costas. Ainda me passou pela cabeça ir até perto da linha do comboio e atirar-me para debaixo do Alfa, mas cobardia continuava a ser o meu segundo nome naquela tarde. Preferi dar o corpo ao manifesto e fui ao que Deus quisesse. Fui para casa.
Um espanto. Nem naquela tarde, nem naquela noite, nos dias que vieram, nas semanas que se seguiram, a minha mãe não tocou sequer no assunto. Nunca. Como se aquilo nunca tivesse acontecido. Foi isso que me enraiveceu mais ainda. Mas que grande cobardolas. E que grande lição recebi da minha mãe.


(excerto do livro Segredos, Fronteira do Caos Editores, 2009)