LUÍSA

Trocámos olhares na zona de lazer e de espera daquele hotel do Sul. Enquanto ela fazia o check-in na recepção eu desviei a atenção do livro que me ia preenchendo por aqueles dias em que tentava recuperar de uma das muitas recaídas que tive depois de abandonar a Patrícia. Pessoa bonita, embora discreta, terá sido contudo apenas o movimento e o barulho a fazer com que eu reparasse na sua chegada. Trazia uma pequena mala denotando que não estaria ali para ficar muito tempo. Talvez apenas o fim-de-semana que se aproximava. Era uma quinta-feira, a tarde já ia a meio, o Inverno aproximava-se, e embora o clima estivesse ameno como sempre por aquelas paragens, não me pareceu que estive ali para mais nada a não ser por qualquer questão relacionada com trabalho. O hotel não tinha muita gente, por isso não foi difícil repararmos um no outro. Por coincidência, ou não, olhámos-nos ao mesmo tempo, o que nos levou a trocar um subtil sorriso. Coisa de passagem. Voltei a enterrar a vista e a atenção no livro que estava a ler e não pensei mais naquela mulher.
Algumas horas mais tarde, estava sozinho sentado à mesa no restaurante mais famoso daquela pequena cidade, quando fui supreendido pela presença dela entrando naquele mesmo local. Chegava acompanhada por outra mulher bastante mais velha. Foi-lhes indicada uma mesa perto daquela onde me encontrava, o que as obrigou a passar mesmo ao meu lado. Procurei naquele rápido movimento a possibilidade de observar mais de perto os olhos daquela mulher que antes tinha visto chegar ao hotel onde eu estava hospedado já ia para dez dias. Sorri agora de uma forma bem mais aberta, disse boa-noite entre dentes, e ela a princípio como que surprendida terá acenado com a cabeça apenas por simpatia sem no entanto se lembrar de mim. Só no momento em que se sentava terá recordado de onde me conhecia pois o sorriso que então me ofereceu foi disso revelador. Ao mesmo tempo notei que estaria a dizer à sua acompanhante de quem se tratava a pessoa que ela estava a cumprimentar. Do mesmo modo, a mais velha olhou para trás e também me saudou com um sorriso.
Enquanto terminava a minha refeição e aproveitando o facto de estar sozinho e de frente para ela entretive-me por vários momentos a observá-la. Os olhos, as mãos, a boca, o cabelo, os gestos que fazia enquanto falava e quando escutava a sua companheira que estava de costas para mim, e que me pareceu dominava quase na totalidade o diálogo existente naquela mesa. Talvez porque se encontrava sobretudo no papel de ouvinte fui por ela algumas vezes surpreendido com o olhar o que embora no fundo não me importasse sempre me deixava um pouco sem jeito. A certa altura quando já estava à espera da minha conta para pagar e no momento em que a sua companhia estava à conversa com um dos empregados talvez sobre a sobremesa que iria escolher fui presenteado com um sorriso pela primeira vez declarado e sem rodeios nem desculpas de simpatia e cumprimento. Acho que estremeci pela franqueza do gesto. Durante um segundo ou dois fiquei quieto, depois ofereci outro sorriso em troca. Paguei, levantei-me e saí dali sem olhar para trás sequer. Depois de transpor a porta que dava para a rua senti uma enorme vontade de rir, mas contive-me para não parecer um tontinho. Resolvi dar uma volta para apanhar um bocado de ar, como fazia sempre desde que ali chegara após o jantar. O céu a Sul sempre me pareceu mais fantástico, as estrelas mais brilhantes, e aquela noite estava deslumbrante pois não havia luar. Em noites assim e com tanta escuridão as estrelas assumem uma luminosidade absolutamente incomparável.
Parei por momentos junto a umas das zonas verdes e bem cuidadas da cidade, deitei-me em cima de um banco de jardim e fiquei durante algum tempo apenas a olhar para céu sem pensar rigorosamente em nada. Olhando só e mais nada. Que sensação de prazer, e que pequenez a nossa que quase não damos importância nenhuma ao que a natureza nos oferece na maior parte das vezes.
Depois de dois ou três cigarros fumados até quase queimar os dedos resolvi por fim levantar-me e dirigir-me a um pequeno bar onde por aqueles dias ia constantemente gastar as últimas horas do fim de cada dia e trocar alguma conversa com quem estivesse presente e predisposto a isso mesmo.
Conheciam-me já à entrada, o porteiro fazia gala em cumprimentar-me amavelmente. Em abono da verdade talvez o facto de ter já comprado cinco garrafas de uísque em dez dias fosse o motivo principal para tamanha amabilidade, mas eu não me importava. Entrei e quando me aproximei do balcão do bar, já o empregado se aproximava de mim com a mão direita estendida para me cumprimentar e a garrafa etiquetada com o meu nome na outra. Duplo, sem gelo, ele já sabia como era, nem era necessário dizer nada. Acabava de meter o copo pela primeira vez à boca sorvendo um trago daquele bom uísque quando os meus olhos chocaram de novo com aquela mulher do restaurante, a mesma do hotel. Embora reparasse que continuava acompanhada pela mesma mulher com quem jantou, não me contive e de copo na mão dirigi-me até à mesa delas.
Levava certamente comigo tanto no olhar como nos lábios um enorme sorriso pois também não me lembrava de outra forma mais apropriada de meter conversa naquele momento.
- Três vezes no mesmo dia não é coincidência, só pode ser um sinal.
As duas sorriram mas nada disseram.
Esperaram antes que eu continuasse a falar.
- Eu peço desculpa pelo meu atrevimento, posso oferecer-vos algo para beber?
Surpreendeu-me o facto de ter sido a mulher mais velha a responder.
- Não, já estamos servidas, mas pode sentar-se se quiser.
Agradeci e foi exactamente o que fiz, sentei-me. Por ali ficámos na conversa enquanto bebemos a partir de certa altura só da minha garrafa. Tive que pedir outra. Fiquei a saber que eram médicas, colegas, as duas do mesmo hospital, que estavam ali para umas jornadas de saúde que tinham início no dia seguinte e que decorreriam durante todo o fim-de-semana. E foi apenas isso, o facto dos trabalhos arrancarem às dez e meia da manhã seguinte que fez com que tivessemos que nos retirar para o hotel quando passavam ainda poucos minutos da meia-noite.
Na recepção antes de nos encaminharmos para o elevador fiquei atento ao número da chave que foi pedido por elas. Estavam a dormir juntas. Ao entrar no meu quarto já sabia o que ia fazer, só estava mesmo a tentar ganhar coragem para isso. Não queria ser mal interpretado, primeiro porque ambas tinham que se levantar cedo, depois porque na verdade também não me interessava muito a companhia da mulher mais velha embora tivesse notado que era senhora de uma extrema simpatia. Enfim, também não querendo correr o risco de apanhá-las a dormir, não esperei mais e marquei no telefone o número do quatro delas. Pela voz percebi de imediato que tinha sido a mais nova que agora tinha nome, chama-se Luísa, a atender. Perguntei-lhe se tinha sono, respondeu-me que não, desafiei-a a uma ida ao bar, que embora estivesse já fechado ao consumo dava pelo menos para nos sentarmos a conversar. Aceitou, e ainda justificou que a colega não iria porque estava um pouco cansada, embora agradeça o convite que eu estava a fazer. Fiquei satisfeito claro por ela não nos acompanhar e ainda por cima ter ficado bem visto. Voltei a sair do quarto, não sem antes pegar nalgumas pequenas garrafas do mini bar que meti no bolso das calças e caminhei em direcção mais uma vez ao elevador agora para descer. Aquela haveria de ser a primeira de pouco mais de cem noites que passei com a Luísa.

(Excerto do Livro SEGREDOS, publicado pela Fronteira do Caos Editores, em 2009)