POEMA TEMPERAMENTAL

Pegando ao acaso num velho livro do poeta Joaquim Pessoa, “Português Suave”, publicado pela primeira vez em 1979, e percorrendo depois as suas folhas, enquanto saboreava um café bem quente, uma cigarrilha e, claro, um uísque (sem gelo), bem resguardado do frio do último fim-de-semana, deparei às páginas tantas com um Poema Temperamental, que ao fim de tantos anos após a sua criação ainda me surpreendeu pela sua actualidade. Nesse sentido, e por tudo o que se passa à nossa volta (por culpa da estúpida inércia que nos consola), aqui o deixo para que constatem da veracidade das minhas palavras.



Ó caralho! Ó caralho!
Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?
Ó caralho! Ó caralho!
Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.
Ó caralho! Ó caralho!
Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?
Ó caralho! Ó caralho!
Estes fatos por medida 
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida 
fazem guardar-nos segredos 
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.
Ó caralho! Ó caralho!
Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo! 
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça 
não é desgraça completa. 
É como ser-se poeta 
sem que a poesia aconteça. 
Ó caralho! Ó caralho! 
Nunca ninguém diz o nome 
do silêncio que nos mata 
e andamos mortos de fome 
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata. 
Ó caralho! Ó caralho! 
O melhor era fingir 
que não é nada connosco. 
O melhor era dizer 
que nunca mais há remédio 
para a sífilis. Para o tédio. 
Para o ócio e a pobreza. 
Era melhor. Concerteza.
Ó caralho! Ó caralho! 
Tudo são contas antigas. 
Tudo são palavras velhas. 
Faz-se um telhado sem telhas 
para que chova lá dentro 
e afogam-se os moribundos 
dentro do guarda-vestidos 
entre vaias e gemidos. 
Ó caralho! Ó caralho! 
Há gente que não faz nada 
nem sequer coçar as pernas. 
Há gente que não se importa 
de viver feita aos bocados 
com uma alma tão morta 
que os mortos berram à porta 
dos vivos que estão calados. 
Ó caralho! Ó caralho! 
Já é tempo de aprender 
quanto custa a vida inteira 
a comer e a beber 
e a viver dessa maneira. 
Já é tempo de dizer 
que a fome tem outro nome. 
Que viver já é ter fome. 
Ó caralho! Ó caralho!

Ó caralho!