A PROMESSA

O novo romance de
João Pedro Martins





Capítulo I



             O Tóino ‘Maluco’ sai hoje do hospital.
         Depois de sete anos no regime de internato no Júlio de Matos, vem finalmente para a nossa casa a tempo inteiro, onde eu, a Francisca e a pequena Luísa, de ano e meio, que ele já conhece de algumas visitas (um domingo a cada três semanas), o esperamos.
            Talvez daqui a algum tempo o leve a São Vicente da Beira. Gostava que o vissem agora. Mas isso é daqui a algum tempo. Para já, temo que o Tóino ainda não esteja preparado para lá voltar.
         Nunca mais me vou esquecer daquela frase do Tóino, proferida com grande dificuldade, (acho que lhe vi uma lágrima a escapar-se-lhe pela face abaixo), que fez com que depois eu percebesse a razão dele ser assim, diferente de todas as outras pessoas que eu conhecia na aldeia. Aquele momento não irá mais sair da minha cabeça. «Tenho um segredo que te quero contar... mas só se jurares que me ensinas a lançar papagaio…». Foi naquele dia que decidi pegar nele e trazê-lo comigo e com a Francisca para Lisboa.
         Tinha oito anos quando me cruzei pela primeira vez com o Tóino, bem mais alto e mais velho que eu. Levei um valente susto quando o vi correr na minha direcção como se fosse atirar-se com violência para me derrubar. De repente, já bem junto a mim, ficou imobilizado. Sorriu abrindo toda a sua enorme bocarra e deu-me um palmadão no ombro à laia de cumprimento com uma força tal que a dor não me largou durante os dois dias seguintes.
         Na aldeia, já tinha ouvido dizer, aqui e ali, que o ‘Maluco’ havia regressado de França, pior do que quando tinha ido para lá. Fiquei curioso, quis depressa ir ver como era um maluco. Nunca tinha posto os olhos em nenhum.
         Ali estava ele, bem à minha frente. Não era muito diferente dos outros rapazes que eu conhecia. Era apenas… um pouco estranho. Parecia rir a todo o instante aparentemente sem motivo nenhum para isso. Mas não me arrependo de o ter encontrado. Apesar do ombro dorido, senti, não conseguindo no entanto perceber bem naquela altura, que começou a nascer entre os dois uma amizade profunda, e como agora sim posso dizer, cheia de cumplicidade, compreensão, e acima de tudo, respeito.
         Eram muitas as histórias que se contavam já naquela altura sobre o Tóino ‘Maluco’. Todas elas de fazer estremecer um adulto, quanto mais um miúdo de oito anos. Às vezes, à noite no escuro, sozinho na cama, ainda antes de o conhecer, dava por mim a soluçar baixinho só de pressentir o medo que iria ter quando deparasse com tão grotesca figura ali na minha aldeia.
         A maior parte das coisas que se dizem do Tóino, na aldeia, não são verdadeiras. Outras são um exagero. De facto, existem as verdadeiras que são horríveis também. Mas essas, como as fui sabendo pelo próprio Tóino que apesar da sua dificuldade de expressão lá me ia contando, nunca ganharam por isso aquela dimensão de brutalidade que toda a gente lhes dava.
         Eu era a única pessoa da aldeia com quem o Tóino falava. Talvez nem a própria família sequer imaginasse que ele até conseguia balbuciar tanto vocabulário, ou não quisessem pura e simplesmente saber. Embora não aceitasse como normais todas as suas histórias, fui compreendendo com o passar do tempo as razões do seu silêncio para com os outros.

         Através do meu pai, da minha mãe, das outras pessoas da aldeia, e também do próprio Tóino, fui reconstruindo aos poucos a sua vida. A sua desgraçada vida de apenas vinte e sete anos. Até àquele dia de mil novecentos e oitenta sete em que dominado pela raiva e levado pela emoção tomei a atitude de tentar mudar a vida de alguém que afinal não tinha nascido maluco.