A GOTA D’ÁGUA

- O tempo é mestre e a vida uma contínua aprendizagem, mas aqui nem o tempo importa, nem sequer existe vida - dizia-me o velho sábio quando nos encontrámos. - O problema é que poucos são os que se dão conta disso antes do fim do tempo de vida. Como tu não deste. Tinhas tanto medo, quiseste tanto tantas coisas que isso até se tornou assustador. Tu e os outros, ninguém consegue realmente encontrar o ponto de equilíbrio, é verdade que o que sentem uns pelos outros às vezes é pura luz, mas outras vezes o sentimento não é tão nobre assim. Tentam transformar as emoções, o amor, os sentimentos de pura beleza, a luz, em escuridão, em formas de egoísmo e posse. Travam lutas internas nas profundezas do vosso ser, são superados pelo próprio ego, deixam-se dominar. Uma noite acordam assustados, arrependem-se depois, não percebem bem o que se está a passar. No fundo não se escutam uns aos outros. Tu, por exemplo, tinhas uma metade de ti que era só luz, a metade que mostravas, mas a outra metade era sombra povoada de tenebrosos fantasmas, a metade que sempre se esconde dos outros, a metade de cada um que ninguém conhece, mas a escuridão está lá, e não existem candeias para alumiar, por isso após o susto tentam rapidamente ultrapassá-lo dizendo sem mesmo acreditar que não vale a pena ter medo porque os fantasmas não existem. Também tu preferias acreditar que os fantasmas eram criados por ti. Era mais fácil, o caminho mais seguro, e ganhavas tempo.
- Não chove nunca durante a claridade? - perguntei eu antes de virar as costas.
Como queres que chova se tu não acreditas nisso - respondeu-me. - Já reparaste como estes campos à tua volta são verdes?
Olhei em redor e de facto observei os campos mais verdes que alguma vez tinha visto.
Fiz nova pergunta:
- Quer dizer que os campos só estão assim porque eu acredito que é assim que eles têm que ser, belos?
Procurei-o com o olhar mas já não o vi naquele momento. Queria apenas dizer-lhe que tinha percebido.
- Alguma vez paraste para observar uma gota de água?
- Como assim? - perguntei virando-me para o lado de onde vinha o som da voz enquanto me refazia do susto de voltar a vê-lo exactamente no mesmo local onde estava a conversar comigo anteriormente.
- Sim - respondeu-me com a mesma calma com que sempre me falava. - Alguma vez paraste para observar uma pequena gota de água equilibrando-se na ponta de um frágil ramo de árvore?
- Talvez - respondi-lhe, embora me tenha parecido que a resposta não o deixou surpreendido.
O velho homem continuou.
- Com graciosidade a gota desafia a lei da gravidade balançando nas bordas das folhas ou nas pétalas de uma flor. São gotas minúsculas que enfeitam a natureza nas manhãs de orvalho ou permanecem como pequenos diamantes líquidos depois de uma chuvada. É por isso que um bom observador dir-me-ia que a vida seria diferente se não existissem gotas de água para temperar o verde e amenizar a secura da terra. Uma pessoa boa do teu tempo de vida foi quanto a isso uma pessoa mais sensível que a maioria. Um dia alguém lhe disse que embora admirasse o seu trabalho com os mais necessitados considerava que o que ela fazia face à imensa necessidade era como uma gota de água no oceano. Como resposta ela apenas disse que sem essa gota de água o oceano seria menor. Foi sem dúvida uma resposta simples e extremamente profunda, pois sem os pequenos gestos que significam muito, a vida e o tempo não fazem sentido. Podias ter feito o mesmo, um simples e rápido aperto de mão no meio da correria dos teus curtos dias, um minuto de atenção para alguém que precisava de ouvidos atentos para não entrar em desespero, uma palavra de esperança a alguém que estava à beira do abismo, um sorriso apenas para quem já tinha perdido o sentido da vida, um pequeno gesto diante de quem está preso nas armadilhas da ira, o silêncio frente à ignorância disfarçada de ciência, a tolerância com quem perdeu o equilíbrio, um olhar com ternura para quem se sente amargurado.
- Onde é que quer chegar? - interrompi-o.
Ele respondeu-me de imediato.
- É verdade que tudo isso são apenas gotas de água que se perdem no imenso oceano, mas são essas pequenas gotas que fazem a diferença para quem as recebe. Por causa da ausência das atitudes aparentemente insignificantes que são facilmente realizáveis é que o tempo se torna triste e a vida perde o sentido. Percebes agora? A gota de água que na verdade nunca observaste…é ela que torna as coisas mais belas à espera que um dia alguém as possa contemplar. Como tu fizeste pela primeira vez ainda agora, pese embora seja tarde.

(in SEGREDOS, Fronteira do Caos Editores, 2009)