O PRIMEIRO ENCONTRO COM O TÓINO ‘MALUCO’

Depois da longa conversa daquele dia, nunca mais vi o pai do Tóino. Não se sabe para onde foi. Largou os filhos e desapareceu. Só anos mais tarde compreendi a grande preocupação do meu pai naquele dia. Lembro-me perfeitamente bem, apesar da minha tenra idade na altura, de ver lágrimas a cair pelo rosto de Palona, no momento em que resolvi deixá-los a sós, e ir à procura do ‘Maluco’ que estava de regresso à minha aldeia. Estava morto de curiosidade. E de medo. Caminhei sozinho durante algum tempo. O sol estava prestes a deixar-nos naquele dia. E nas ruas de São Vicente da Beira não se via viva alma. Seria o Tóino ‘Maluco’ assim tão assustador ao ponto de obrigar toda a gente a ficar retida dentro de casa. Não. Talvez não fosse isso. Embora naqueles momentos pensasse exactamente que era por isso mesmo. Mas mesmo assim, a minha curiosidade era superior ao medo. Já ia completamente absorto nos meus pensamentos e a pensar que pelos vistos não iria ainda conhecer o tal maluco, pois a noite já tinha caído e a minha mãe quase de certeza que estava já a gritar por mim para ir jantar, quando ao longe vejo algo muito parecido com um touro bravo a correr na minha direcção. Só que este tinha braços e pernas, mas enfurecido parecia mesmo que vinha. Olhei para os lados e não vi escapatória. Só me restava fechar os olhos, porque nem sequer tinha tempo para chorar, e esperar pelo embate, que pela velocidade do bicho me devia atirar de certeza para cima de qualquer árvore ali por perto. Fiquei completamente imóvel. Cerrei olhos e dentes e esperei. E esperei. E rezava. E esperei. E por fim, estranhando a demora para a colisão corporal, resolvi abrir um pouco a vista direita, e de imediato abri os dois olhos, tal o susto que apanhei com aquele gigante ali mesmo parado à minha frente a dois palmos de mim. Não me saiu nada. Acho apenas que orei para mim mesmo o “Pai Nosso” com tal rapidez que nem um avião o alcançaria, mas não ousei sequer mover um pêlo da cara que fosse. Aquele era o Tóino ‘Maluco’. “Será que me vai matar? Se calhar tem uma faca no bolso.” Quis gritar pela minha mãe, pelo meu pai, mas foi só mesmo intenção. Mesmo que tentasse acho que não ia sair nada da minha garganta. Aliás isso seria um bom pretexto para o ‘Maluco’ me degolar logo ali, pensei. Mas não, ao invés, recebi apenas um palmadão no ombro como se me estivesse a dizer: «’tás bom?», e depois seguiu caminho. O caminho dele. Lembro-me que deu uma grande risada antes de voltar a correr da mesma maneira como antes o tinha visto fazer na minha direcção. Senti um arrepio tão grande depois dele desaparecer outra vez no horizonte que até acho que fiz chichi nos calções que trazia vestidos. Instantes depois acabei por sorrir aliviado quando me pus a caminho de casa. Ia feliz. Já tinha conhecido um maluco. E ainda continuava vivo. Pela primeira vez na vida tinha uma história para contar aos outros. Uma história que se tinha passado comigo. E logo com o Tóino ‘Maluco’. Esta não era para todos.
(in A PROMESSA, Fronteira do Caos Editores, 2010)