JOÃO PEDRO MARTINS - LIVROS EDITADOS (excertos)




Ele sorriu ao mesmo tempo que se encaminhou em direcção à casa mas deteve-se à porta quando a viu a dançar ao som de uma música que não se escutava. Ela rodopiou até encontrar os seus braços. Santiago apertou-a, ela mexeu a cintura de encontro a ele roçando-se e provocando-o. As mãos não paravam de o acariciar. Os seus lábios buscaram os dele e as línguas acabaram por se tocar como se toda a vida tivessem andado em busca uma da outra. Entregaram-se àquele beijo com uma loucura quase sôfrega. Ofegaram. Começaram a transpirar. Até que, já solta, Miriam recuou vagarosamente e, acenando-lhe lentamente, entrou em casa e fechou a porta, deixando-o do lado de fora.
(excerto de AMOR, MEU GRANDE AMOR, 2012)





Levantei-me a correr tentando não tropeçar em nada até chegar à porta do quarto para não acordar Francisca e Luisinha. Devia estar escuro ainda lá fora pois pelas frestas da janela não vislumbrava qualquer sinal de claridade. Sentia o corpo pesado e estranho. E estava com um mau pressentimento. Mal alcancei o corredor dirigi-me ao quarto do Tóino. Entreabri a porta que estava apenas encostada e à primeira vista tudo me pareceu normal. Depois, breves segundos após, confirmei o que suspeitava quando saltei da minha cama. O Tóino não estava lá, como devia, a dormir. Regressei uma vez mais ao meu quarto e vesti-me como pude. Desta vez tenho a certeza que bati nalguns móveis e tropecei em brinquedos da minha filha que estavam espalhados pelo chão. Estranhamente, nem ela nem a mãe tiveram qualquer tipo de reacção. Dormiam que nem “pedra”. Ainda me passou levemente pela cabeça a possibilidade de despertar Francisca e dizer-lhe que o Tóino tinha desaparecido de casa, mas não o fiz. Não podia perder mais tempo. Corri para a porta da rua e ao passar pela sala de jantar reparei que o relógio ainda não marcava seis horas. Não devia faltar muito para o sol nascer, «isso já não é mau», pensei. Quando saí, acho que batendo com a porta para que ela se fechasse à primeira, sabia muito bem onde tinha que me dirigir. Mas era agoniante aquela sensação de ter que ser rápido para evitar males maiores. Pela minha cabeça, a cento e setenta quilómetros por hora, aceleravam inúmeros pensamentos, qual deles o pior?... Tanto esforço dispensado ao longo dos últimos anos e tinha quase a certeza naquele momento que a promessa não cumprida estava a ser cobrada ou talvez fosse demasiado tarde para isso. Tantos anos volvidos e nunca mais me tinha lembrado do que prometi com tanto afinco. E corri como nunca antes tinha corrido em direcção ao monte mais alto das redondezas, local onde o Tóino já tinha sido vítima do pior que um rapazito de poucos anos de vida pode ser. Uma infância perdida à conta daquilo, e, por conseguinte, quase toda uma vida deitada ao lixo. E eu, que tinha tido tanta responsabilidade na tentativa de o ajudar a superar tão grande trauma, se é que alguma vez isso seria possível, estava agora acometido do maior sentimento de culpa que se possa imaginar, por nunca mais me ter lembrado.
E sentia o tempo a passar, e a agonia de pensar que tudo tinha sido em vão. As forças começavam a faltar. E o monte que nunca mais via aproximar. É então que quase sem ar olho lá para cima e o vejo. Numa paisagem deslumbrante que coincide com o nascer do sol no horizonte, no interior de uma ainda ténue luz avermelhada, o Tóino a iniciar uma corrida desenfreada, numa imagem quase fotográfica, daquelas de cortar a respiração, de braços abertos em direcção ao precipício.
Naquele momento só conseguia ver a sua silhueta e ainda estava longe, tão longe que talvez fosse inútil gritar. Ainda assim, e quase sem fôlego tentei um “berro” a plenos pulmões:
- TÓINO!...
O sol não permitia que o visse com nitidez, mas tenho quase a certeza que enquanto dava os últimos passos de corrida a escassos metros do “fim da linha”, o vi olhar para mim, e sorrir, abrir aquele sorriso que era só seu, como que a dizer: «olha para mim, vê como sou feliz agora», e naquele momento tropeço num pedregulho estanque na terra e estatelo-me ao comprido ficando com o corpo virado para cima, e… é então que o vejo… a voar. «O Tóino está a voar. Aqui mesmo por cima de mim. Eu sei que ele agora já não me vê. É impossível. Ele está lá no alto. E do alto onde ele se encontra, ele vê o mundo. Não me vê a mim». E eu vejo-o a rir. Ele vai de braços abertos e voa… voa feliz o Tóino.
(excerto de A PROMESSA, 2010)









Cada pessoa esconde um segredo. Nem imaginamos quando as vemos passar. Tal como Dorothy, a menina do Kansas que é atingida por um tornado que a transporta do seu mundo desinteressante para a extraordinária terra de Oz, governada pelo Feiticeiro da Cidade Esmeralda. Apesar de partilhar algumas aventuras maravilhosas com novos amigos, ela acaba por compreender mais tarde que não há nada como a sua casa. Nada como a nossa casa. A maior parte das vezes só compreendemos isso quando já é demasiado tarde.
Antes de dizer adeus quero partilhar uma passagem de Pablo Neruda que lembro sempre quando não tenho respostas para dar: “Quanto vive o homem, por fim? Vive mil anos ou um só? Vive uma semana ou vários séculos? Por quanto tempo morre o homem? Que quer dizer para sempre?”. E ao que acrescento: os segredos são apenas aquelas pequenas coisas a que não damos grande importância. As outras, as coisas realmente importantes, essas nós não conseguimos viver com elas. É por isso que partilhamos. E é aí que deixamos uma parte da nossa vida. Os segredos não são nossos. Não são de ninguém.
Agora sim, posso ir.
(excerto de SEGREDOS, 2009)









Passou, praticamente, uma semana, e chegou a hora do regresso a Lisboa. Jorge e Solange seguiriam juntos no mesmo avião. Durante aqueles oito dias palmilharam a capital moçambicana na tentativa de encontrar uma pista que os conduzisse até Isabel, mas pouco conseguiram, para além de umas informações, aqui e ali, sobre a sua presença em determinados locais públicos. Nada mais havia a fazer. A certa altura ainda conseguiram chegar à conversa com determinada personalidade influente dos meandros políticos, mas foi-lhes dito que a investigação estava a decorrer e que por isso não poderiam ser dadas quaisquer informações.
Àquela hora da manhã, pouco depois do nascer do sol, enquanto esperavam, em pleno aeroporto, a hora do embarque, Jorge sentia-se cansado e desgastado com toda a situação.
- De nada valeu ter vindo aqui. Foi em vão que gastei dinheiro nesta viagem - lamentava-se.
- Nem sei o que dizer para não ficares tão em baixo – disse Solange.
- Não precisas de dizer nada. A ti, tenho que pedir desculpa por todo o incómodo e agradecer a ajuda preciosa que me deste.
- Não te preocupes com isso. Não incomodaste nada, e eu gostei que tivesses conhecido o meu País. Só tenho pena, de facto, que não tenhas conseguido encontrar a tua mulher.
- Sabes, Solange, eu nem sei bem se queria mesmo encontrá-la. Depois de tudo o que ela me fez passar, acho que nem sei como iria reagir se a tivesse encontrado.
- Eu compreendo o que queres dizer. Mas deixa lá, ela há-de aparecer. A Interpol, ou seja lá quem for, há-de dar com ela. Não se evaporou, de certeza.
- Eu sei – referiu Jorge Romão, ao mesmo tempo que se levantou e avançou uns passos na direcção de uma extensa varanda que se situava sobre a placa do aeroporto. Inspirou profundamente o agradável ar ainda fresco daquele princípio de manhã em África. Daí a poucas horas o calor ia dominar, sabia-o, mas ele já não estaria por ali para sentir o clima quente daquelas terras. Tentava mentalmente abstrair-se um pouco de toda a situação que ali o tinha levado olhando perdido o horizonte como que despedindo-se daquele País e daquele continente onde se encontrava pela primeira vez.
Quando o seu olhar se aproximou outra vez da pista daquele aeroporto, sentiu o corpo estremecer e o coração aos pulos, depois de fixar o olhar numa mulher que se distinguia dos restantes passageiros que seguiam a pé em direcção à escada de um dos aviões, só porque era a única de pele branca. Embora um pouco distante para ver com clarividência, e daquela mulher, lá ao longe, ter a cabeça coberta por um lenço, não teve dúvidas que era Isabel. Era ela. Transportava consigo uma pequena mala, uma pasta na mão direita. Ainda atordoado com o que estava a observar, tentou esboçar um grito, que lhe saiu mudo, na altura em que a mulher já escalava os últimos degraus que a levavam ao interior do avião.
Correu do local onde se encontrava para a zona de acesso àquela pista. Foi barrado por um segurança que não o deixou passar.
- Diga-me só uma coisa, para onde vai aquele avião? – perguntou, apontando.
O rapaz fardado, olhou para o relógio que trazia no pulso esquerdo ao mesmo tempo que segurava com a outra mão um dos braços de Jorge e respondeu:
- Aquele?... Aquele vai para Joanesburgo.
(excerto de CÉU NEGRO, 2008)









Já tinha ouvido António fechar a porta do bar quando dou conta que não tinha no bolso as chaves do carro. Fiz meia volta e gritei pelo nome dele. Não demorou muito até voltar a abri-la.


- Então, ainda aí estás? – perguntou-me de sorriso nos lábios.
- Devo ter deixado as chaves do carro aí em cima do balcão...
- Então, entra. Vai lá ver onde estão.
As chaves do carro não foram dificeis de encontrar. Estavam ao lado do jornal em cima do balcão. Mas, para além de António, já não estava ninguém dentro do bar, pelo menos que eu visse. Aquele homem que tinha estado a contar uma história que me apanhou completamente desprevenido parecia ter-se evaporado.
- Então o seu amigo, António, já se foi deitar? – perguntei enquanto este se entretinha a limpar o que estava em cima do balcão.
- Qual amigo? – perguntou-me com ar de quem fica surpreendido.
- Aquele que já cá estava quando entrei – respondi.
- Mas quando tu entraste não estava cá ninguém. Até fui eu que te abri a porta.
Fiquei deveras baralhado. Não sabia já se era António que estava a entrar comigo ou se tudo não tinha sido de facto produto da minha imaginação. Até que de repente me lembrei de ver à porta do bar três carros estacionados. O meu, o dele e outro.
- Oh António, então desculpe lá, mas de quem é aquele carro que está lá fora estacionado?
Mal acabei de fazer a pergunta, vejo-o levantar os olhos bem abertos na minha direcção. Confesso que a sua altura de dois metros e o ar sério que fez naquele momento fizeram com que me sentisse muito pequeno. Aproximou-se calmamente de mim e sem nunca desviar o olhar foi dizendo também de uma forma muito suave.
- Aquele carro é de um grande amigo que conheci em Cape Town. Ele veio à frente, e quando eu regressei encontrei-o por aqui perdido e à deriva, como um barco sem rumo, da mesma maneira que o tinha encontrado lá, trinta anos antes. Viveu aqui comigo ainda durante algum tempo. Um dia, acordei e ele não estava. Nunca mais soube nada dele. Não levou nada. E o carro também o deixou onde ainda hoje se encontra.
- Terá morrido? - perguntei.
- Não creio – respondeu. – Costumava dizer, “grandes coisas se fazem, quando os homens e as montanhas se encontram”. Um homem que diz isto não morre nunca. É um poeta. E esses são eternos. A última noite que passei com ele ouvi-o dizer que ainda continuava à procura das montanhas. E isto aqui, meu caro, é só uma pequena serra.
(excerto de AS PORTAS OU A MORTE DE UM MITO, 2003)