Ando farto
Estou farto de fascistas
patrocinados
por tv’s e jornais de escândalos,
a vomitar verborreia encomendada
nas antenas abertas e fóruns
radiofónicos
que só a democracia lhes permite
usar.
A dispararem alarvidades com canos
serrados
que, a serem usadas, só feririam de
morte
a própria,
em benefício de duas ou três bestas
que só querem sugar o sangue
dos pobres de espírito
de quem eles se aproveitam.
Diz-me lá, oh desventurado, onde é
que cagas,
só para sentir se o teu cheiro é
diferente
do meu?
("SEM PANTUFAS nos 50 anos de ABRIL", Bookmundo, 2024)
"não sou especialista da escrita e muito menos da fotografia,
tenho sido, simplesmente,
um curioso com boa vontade e muitos falhanços,
ainda assim não quis deixar passar em claro o vigésimo ano
após a edição do primeiro livro,
daí a celebração que justifica este 'redondo' décimo livro."
("10 em 20", Bookmundo, 2023)
"Observar tudo. Gravar tudo. Um dia, quando a solidão se sentar ao nosso lado, esses detalhes, essas pequenas grandes coisas irão fazer-nos companhia."
Quando os cabelos da cor da neve dominarem a tua
face e os dias se fizerem frios porque a gélida solidão será a única presença
constante a teu lado quando os dias se fizerem de insistente saudade, tu vais
lembrar as tardes quentes, de quando levavas a passear os pequenos e havia
risos de alegria, papéis, rebuçados e pipocas espalhadas pelo carro. Recordarás
as brincadeiras deles, de quando usavam a mangueira do jardim para se molharem
uns aos outros em vez de regarem as árvores. E a tua voz a recomendar menos
confusão, mais economia de água, de energia eléctrica. Recordarás aquelas mãos
pequenas que mexiam na tua orelha enquanto os olhos se tentavam fechar
entregando-se ao sono. O urso de peluche de olhos grandes largado no banco de
trás do carro que te acompanhava regularmente até ao trabalho. O mesmo que
ficava ali a aguardar o regresso do dono no fim do dia. Lembrarás as vozes que
perguntavam insistentemente: «Pegas-me ao colo? Não estou a ver nada daqui. Sou
muito pequeno.» «Levas-me ao colo? Estou cansado.» «Gostas de mim?» E os
lanches nas tardes de fim-de-semana, as visitas inesperadas, as festas nos
aniversários, as cartas que ainda iam chegando, as viagens com os amigos, os
amores, os carinhos, as lágrimas de emoção e contentamento.
Tu
vais lembrar.
Mais tarde ou mais cedo tudo passará pelo caleidoscópio das memórias trazendo-nos ao coração ternura e saudade.
("QUANDO OS DIAS SE FIZEREM FRIOS", Bookmundo, 2021)
Despertar
Acordo e a primeira informação que o
cérebro dá ao corpo é que deixe o braço descair para o lado e que a minha mão
ainda adormecida te procure cega pela cama, mas nela sinto apenas o frio dos
lençóis.
E sinto-me a boiar num mar
desgostoso e transtornado por acordar e não te pressentir contemplando-me num
olhar atento e ansioso para me saudares com esses teus olhos cor de mel.
Aquele teu “bom dia” que espero e
com que sonho e aquele olhar carinhoso e meloso que me lembra uma bela paisagem
alentejana no fim de uma tarde de Verão.
Ainda não sei se quero abrir os olhos ou voltar a envolver-me por entre os lençóis, aconchegar-me e continuar a flutuar pelos meus sonhos e imaginar como seria se estivesses aqui.
3.13
Algo
em mim morre a cada dia;
o
tempo que me arrebata,
o
silêncio,
a
saúde, o amor, os sonhos e as alegrias.
Depois
evoco as minhas muitas ilusões
e
penso: “não, eu não”. Serei um tolo
por
pensar que a respiração mata
o
meu antigo eu que suportou tanto?
Às
vezes sinto-me um estranho aos meus próprios olhos,
um
sonhador, um eterno jovem
para
quem tudo ontem eram flores e hoje são cardos.
E
continuo a espantar-me,
porque
cada vez mais próximo da morte, imagino
que já morri muitas vezes na vida.
Ele sorriu ao mesmo tempo que se encaminhou em direcção à casa mas deteve-se à porta quando a viu a dançar ao som de uma música que não se escutava. Ela rodopiou até encontrar os seus braços. Santiago apertou-a, ela mexeu a cintura de encontro a ele roçando-se e provocando-o. As mãos não paravam de o acariciar. Os seus lábios buscaram os dele e as línguas acabaram por se tocar como se toda a vida tivessem andado em busca uma da outra. Entregaram-se àquele beijo com uma loucura quase sôfrega. Ofegaram. Começaram a transpirar. Até que, já solta, Miriam recuou vagarosamente e, acenando-lhe lentamente, entrou em casa e fechou a porta, deixando-o do lado de fora.
("AMOR, MEU GRANDE AMOR", Fronteira do Caos, 2012)
Estava a caminho dos nove anos e os outros miúdos já sentiam medo só de se aproximarem dele. Ninguém percebeu ao certo como as coisas começaram. Até então, o miúdo não tinha evidenciado nenhum tipo de situação mais conflituosa. Até era uma criança com quem os adultos gostavam de conversar. Em tudo o que dizia revelava uma esperteza raramente vista naquelas idades. Com o afastamento dos outros, Tóino começou a ser visto sempre sozinho, isolado de tudo e todos. Muitas eram as vezes que era apanhado a olhar para o céu. Um olhar perdido no infinito. Costumava ficar assim, horas e horas, muitas vezes até depois do anoitecer. De vez em quando avistava um avião lá no cimo e seguia-o com o olhar. Depois de o avião desaparecer no horizonte costumava passar a meia hora seguinte a dar as mais altas gargalhadas jamais ouvidas em São Vicente da Beira. As pessoas não achavam graça.
("A PROMESSA", Fronteira do Caos, 2010)
("SEGREDOS", Fronteira do Caos, 2009)
O que lhe passava pela cabeça era um emaranhado de imagens e emoções que não conseguia controlar e, para as quais, tão pouco, encontrar explicação. Ainda assim, algumas dessas coisas, eram verdadeiramente revigorantes. Não tentava sequer perceber, e mesmo que tentasse não conseguiria. Tudo o que se estava a passar não dependia de si. Era algo muito superior e que os seus sentidos não conseguiam dominar. Estava envolvido num intenso nevoeiro. Uma terrível obscuridade.
Sons, apenas sons, todos muito distantes…
Jorge Romão tinha a real sensação que, pela primeira vez na vida, estava a escutar o barulho do horror, vindo de diferentes lugares e várias direcções. Experimentava a horrível impressão de ouvir um constante chamamento. Conseguia ouvir gritos mudos a chamar por si. Sentia, não sabe ao certo como, que alguém estava à sua espera. Não o deixavam repousar. Até parecia que toda a vida lhe estava a escoar por entre os dedos. Conseguia ver o Mundo, inteiro, todo ao mesmo tempo.
("CÉU NEGRO", Fronteira do Caos, 2008)
*****
Acordei de repente com a sensação de ter
ouvido o barulho de uma porta a fechar. Ainda meio a dormir, abri ligeiramente
e com alguma dificuldade um dos olhos para ver o que se passava. Talvez fosse
uma das mulheres que faz a limpeza dos quartos, mas não tenho a certeza.
Lembrei-me que a porta deveria continuar apenas no trinco. Não me recordo de
alguém a ter fechado à chave.
A claridade vinda da única janela
existente dominava já por completo toda aquela assoalhada que tresandava a
sexo. Onde me encontro, deitado entre duas suecas louras de corpos fascinantes
completamente desnudas, não consigo sequer imaginar que horas poderão ser. A
única coisa que sei é que já nasciam os primeiros raios de sol quando Agnetha,
Anni e eu caímos profundamente no sono, extenuados depois de uma louca
madrugada com muito sexo à mistura.
("AS PORTAS ou a morte de um mito", Garrido Editores, 2003)