MARIA ELISA

O final de tarde aproximava-se a largos passos naquele dia do mês de Julho. O som do mar, as gaivotas, as crianças a gritar, nada fora do normal. A brisa a fazer-se sentir, fresca, e por isso eu já tinha uma camisola sobre as costas, enquanto de tudo o resto estava abstraído, profundamente concentrado num livro de quase setecentas páginas que me estava a prender a atenção e os movimentos para tudo quanto seria normal num jovem adolescente de dezasseis anos. Nem sei como, a dado momento levanto os olhos na direcção do mar e vejo alguém que de imediato reconheço, um velho amigo de Verão, daqueles que só vemos uma vez por ano durante um mês, encaminhar-se para a beira-mar na companhia de três ou quatro miúdas, e que por breves instantes me deixou a pensar se eu não estaria ali a perder tempo de vida enquanto ele se estava a divertir na maior. Ainda os vi a fazer uma espécie de marcações na areia molhada, talvez fossem fazer um jogo. Não demorei muito a voltar a fixar o meu olhar nas letras do livro que tinha em cima dos joelhos. Também não terá passado muito tempo até ser interrompido com um grito lá de longe: «falta-nos um, queres vir jogar?». Também não sei bem porquê, de imediato larguei o livro e fui. Aquela história que eu estava a ler era apaixonante, mas as miúdas, uma em particular, também não me parecia mal. E mal sabia eu que estava prestes a viver o melhor Verão da minha vida.
O jogo jogou-se. Umas quantas boladas de deixar marca mas não dor, porque um homem nunca pode dar sinal de fraqueza, pelo menos num primeiro encontro, e chegou o momento de arrumar a trouxa e ir para casa, não sem antes se combinar o reencontro para mais tarde, logo a seguir à novela da noite. Antes não, porque as férias acabam, volta-se à vidinha do costume rapidamente e por isso não convém perder o fio à meada do “Pai Herói”.
Pouco passava das nove e meia da noite e tal como combinado, um extenso grupo caminhava calmamente no paredão junto à praia soltando histórias de deitar fora e contando gargalhadas de quem está solto de compromissos e responsabilidades escolares e caseiras. Eram tantos mas o meu interesse era só um. Uma. A Maria Elisa. E a ela fui apresentado. E com ela caminhei atrás de todos os outros, durante cerca de duas horas, falando baixinho, trocando algumas confidências, vivências, de quando em vez uns silêncios estranhos, incómodos, mas que nem assim nos levavam a abdicar de estar perto um do outro e juntarmo-nos ao restante grupo.
A Maria Elisa era mais velha que eu. Tinha já vinte anos feitos, o que me deixava roído de inveja, a mim, que nunca mais via chegar a altura de atingir a minha maioridade. Mas nem a sua notável e incomparável maturidade fez com que se afastasse de mim. Em determinado momento daquela noite surpreendemente estrelada e serena eu já tinha quase a certeza que era àquilo a que chamavam amor à primeira vista. Na verdade, não é nada que se veja, era algo que eu sentia. E ela também. Valeu-nos o facto daquele mês de Julho ainda estar no começo. Com os dias que restavam poderíamos amadurecer de verdade aquele estranho sentimento. O que era aquilo para mim? Amor? E com o amor vem o sexo, não é? Eu ainda não sabia, mas pressentia. E aconteceu. Pela primeira vez na vida reparei como o mundo é belo, a vida é boa para ser vivida, as estrelas afinal têm um significado, o mar não é assim tão azul como dizem, e o sol brilha para todos desde que os olhos estejam bem abertos. E a música, a música, já existia sim, mas só agora ganhava corpo e significado.
O problema é que o mês de Julho passou mais depressa que todos os outros meses do ano, naquele ano, e depressa o Verão chegou ao fim. Cada um foi para o seu lado, com um «até para o ano», claro. E eu chorei, chorei de amor e saudade pela primeira vez na vida, acho. Na tentativa de minimizar a dor que sentia ainda ouvi minha avó dizer: «filho, os amores de praia, enterram-se na areia», o que me fez chorar ainda mais.
Claro que durante alguns meses pensei que não resistiria, que morreria mesmo. Mas a Maria Elisa tinha mudado a minha vida para sempre. Ajudou a fazer de mim um homem, e eu depois daquele Verão nunca mais conseguiria voltar a ser o mesmo, apenas agarrado a um livro e sem nada mais para tocar. E embora isso a princípio me tenha custado muito, acabei mesmo por dar uso ao ensinamento da minha avó, e não ficar a chorar durante os onze meses seguintes que faltavam para voltar a reencontrá-la.


(Excerto do livro Segredos publicado em 2009 pela Fronteira do Caos Editores)